domingo, setembro 02, 2007

ATÉ SEGUNDA ORDEM, de Paulo Henriques Britto

O carioca Paulo Henriques Britto é, na minha opinião e na de muita gente também, um dos principais poetas e tradutores brasileiros. Gosto muito deste poema, em clima de história de suspense:




Até segunda ordem


(10 de outubro)


Até segunda ordem estão suspensas
todas as autorizações de férias,
viagens, tratamentos e licenças.
É hora de pensar em coisas sérias.
Deve chegar mais um carregamento
até o dia quinze, dezesseis
no máximo. Fui lá em Sacramento,
mas não deu pra encontrar com o tal inglês -
será que alguém errou o codinome?
Confere aí com quem organizou
o negócio todo. Bem, amanhã
a gente se fala, que agora a fome
está apertando. (Ah, o padre adorou
o canivete suíço de Taiwan.)


(9 de novembro)


Tudo resolvido. O campo de pouso
até que é razoável. Mas o tal de
Carlão, hein, vou te contar. É nervoso,
não sei; parece que sofre de mal de
Parkinson, ou coisa que o valha. Mas isso
é o de menos. O pior é que o "Almirante"
desde terça tomou chá de sumiço.
Não sei que fim levou; é preocupante.
Chegou a encomenda de Lisboa.
O número de 318.
A senha: "O olho esquerdo de Camões
não vale uma epopéia."(Essa é boa!)
Não agüento mais ter que jantar biscoito.
No mais, tudo bem. Aguardo instruções.


(21 de dezembro)


Sim, recebi a carta do João.
Só que o seu telefonema da sexta
já havia alterado a situação
completamente. É, o Bento é uma besta,
mas você, também... Nessas horas é que se
vê que falta faz um profissional.
Você nunca vai ser como era o Alex.
Mas deixa isso pra lá. O principal
é que o negócio está de pé, ainda.
O que não pode é pôr tudo a perder
a essa altura do campeonato.
Não diga nada, nada à dona Arminda.
Toma cuidado. Conto com você.
Aguarde o nosso próximo contato.


(12 de janeiro)


Por que ninguém me deu um aviso?
Pra quê que serve essa porra de bip?
Assim não dá. Que falta de juízo,
de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe
dando duro, e vocês aí de pândega!
O deputado, é claro, virou bicho,
e não vai mais ajudar lá na alfândega.
Meses de esforço jogados no lixo!
E agora? E o alvará do "Três Irmãos"?
E os dez mil dólares do Mr. Walloughby?
Não vou nem falar com o doutor Felipe.
Vocês que agüentem o tranco. Eu lavo as mãos.
Se alguém me perguntar, eu tenho um álibi
perfeito: "Eu estava lá em Arembipe".


(19 de janeiro)


Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,
e àquela moça — a dos "quatorze dígitos" —
o embrulho que ficou com o teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquetes back-up estão comigo.
Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,
mas deixei um revólver na cozinha,
com uma bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.



PAULO HENRIQUES BRITTO

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