segunda-feira, outubro 22, 2007

Resenha de "Ariel" na Folha de São Paulo




Crítica/"Ariel"
Edição mostra Sylvia Plath sem cortes

Lançamento traz os originais da coletânea "Ariel", datilografados pela poeta, sem supressões e inclusões do marido Ted Hughes

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Graças às revelações da crítica Marjorie Perloff, os cultores de Sylvia Plath já sabiam, desde 1990, que o livro, publicado em 1965 pelo marido Ted Hughes sob o título "Ariel", não era exatamente a reprodução dos originais datilografados que a autora deixara sobre a escrivaninha, em 1963, quando se suicidou aspirando gás de cozinha. Os poemas tinham sido remanejados por Ted, que os submetera a cortes e inclusões, para -segundo ele- "fazer do livro o melhor que pudesse" e, ao mesmo tempo, "defender a memória da mãe de seus filhos e de pessoas vivas, além da própria reputação".

Alguns dos poemas suprimidos deixavam à mostra a grande amargura de Sylvia com a traição do marido, que a abandonou por Assia Wevill, com quem ele teve uma filha. Esse ato de suposto escamoteio dos indícios de uma possível culpa fez com que a corrente feminista norte-americana o atacasse furiosamente, atribuindo-lhe a morte da esposa por indução ao suicídio (a palavra "assassinato" foi mesmo utilizada). Via-se nele apenas o poeta inglês conquistador que teve inúmeros casos com suas colegas e alunas do Pembroke College, em Cambridge, onde conheceu e se casou com Sylvia, que ali fora estudar graças a uma bolsa da Fundação Fullbright.

Essa fúria feminista agravou-se ainda mais quando, seis anos após a morte de Sylvia, a "outra" igualmente se suicidou com gás, depois de matar a filha Shura, que tivera de Hughes. À parte essa acusação pública de mau-caratismo, Ted era considerado pela crítica como o mais importante poeta inglês do século 20, e guardou o título de Poeta Laureado da Inglaterra de 1984 até sua morte, em 1988. Pouco antes de morrer, publicou uma coletânea de poemas, "Cartas de Aniversário" (ed. Record), em que relata seu relacionamento com Sylvia, desde o encontro inicial em Cambridge até a separação, conseguindo com isto granjear alguma simpatia em relação ao seu comportamento conjugal.

Originais verdadeiros


Contudo, foi só em 2004 que os mesmos cultores plathianos puderam ter acesso aos verdadeiros originais de "Ariel", na ordem estabelecida por Sylvia, sem cortes nem substituições. A filha do casal, Frieda Hughes, deu a público uma edição fac-similada dos originais cuidadosamente datilografados pela própria Sylvia, com todas as emendas à mão feitas por ela. O título original era inicialmente "Rival" (rival), emendado para "A Birthday Present" (um presente de aniversário), depois para "Daddy" (papai), para fixar-se finalmente em "Ariel", que, nas próprias indicações um tanto despistadoras fornecidas por Sylvia à BBC numa entrevista de 1962, tanto podia significar o personagem shakespeariano de "A Tempestade" quanto o nome de um cavalo de sua predileção.

Nesse prefácio, a filha Frieda, embora defendendo a integridade da obra materna, escusa o pai de ter desfigurado o livro, informando que ele fizera uma leitura crítica dos originais, retirado 13 poemas e os substituindo por trabalhos mais recentes e expressivos que Sylvia compusera nas últimas semanas antes de morrer. E Frieda ataca frontalmente os que acusaram Ted de ter agido em causa própria, dizendo: "Meu pai tinha profundo respeito pela obra de minha mãe, apesar de ter sido um dos alvos da fúria dela. A obra era tudo para ele, que via o cuidado com ela como uma forma de homenagem e uma responsabilidade".

Destoando do coro da crítica feminista anti-Hughes, a criteriosa Meghan O'Rourke publicou, logo após o aparecimento da edição fac-similada de 2004, um artigo em que analisa as alterações introduzidas por Ted, concluindo, com argumentos convincentes, que a versão dele "é de fato superior à de Plath -e que a própria [autora] teria ficado satisfeita com ela". Essa opinião, no entanto, não é incontestável.

Saindo agora a edição brasileira de "Ariel", vê-se que foi conservada a reprodução fac-similar dos originais datilografados de Sylvia Plath, vis-à-vis da tradução dos versos feita por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. Embora não esteja esclarecido o método utilizado pelos tradutores -uma espécie de execução musical seja a dois pianos ou a quatro mãos- a qualidade do trabalho de transposição (no livro mencionada como "transcriação") merece ser destacada, tendo em vista a riqueza vocabular, os efeitos guturais, sonoros, dessa poesia que, segundo a própria autora, ganhava intensidade ao ser lida em voz alta. Quem ouviu a gravação em cassete "The Poet Speaks" -em que T. S. Eliot lê um dos poemas humorísticos de "Os Gatos"- lembra-se da voz esganiçada e quase histérica de Sylvia dizendo "Daddy", dedicado ao pai entomologista "prussiano", Otto Plath, que ela perdeu aos oito anos e de cuja lembrança jamais conseguiu libertar-se, tanto assim que cogitou de dar a este seu livro o título do poema. Seu temperamento irritadiço e neurótico levava-a a constantes crises de depressão, mas foi sobretudo a ruptura com Ted que a fez escrever alguns de seus melhores versos, amargos e espinhosos, estrategicamente subtraídos por ele em sua edição de "Ariel".

A poesia de Sylvia é hermética, desnorteante às vezes, com o leitor sem saber o significado ou a intenção dos versos, mas sempre construída com um vocabulário de riqueza léxica incomparável, bem diversa da poesia do marido que, pelo menos nas "Cartas de Aniversário", assume um tom narrativo, facilmente decodificável.


IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor, autor de "A Caça Virtual" (ed. Record)


ARIEL
Autora: Sylvia Plath
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo
Editora: Verus
Quanto: R$ 34,90 (210 págs.)
Avaliação: ótimo

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