sexta-feira, setembro 26, 2008

MINHA VIDA NOS TUBOS DE SOBREVIVÊNCIA (poema de Roberto Bolaño, traduzido por Rodrigo Garcia Lopes)



Como eu era pigmeu e amarelo e de feições agradáveis
E como eu era esperto e não estava a fim de ser torturado
Num campo de trabalho ou numa cela acolchoada
Me meteram no interior deste disco voador
E me disseram “voa e encontra o teu destino”. Mas que
Destino iria eu encontrar? A maldita nave parecia
O holandês voador pelos céus do mundo, como se
Quisesse fugir de minha menos-valia, de meu esqueleto
Singular: uma cusparada na cara da Religião,
Uma machadada de seda nas costas da Felicidade,
Apoio Moral e Ético, a fuga para a frente
De meus irmãos verdugos e meus irmãos desconhecidos.
Todos enfim humanos e curiosos, todos órfãos e
Jogadores cegos à beira do abismo. Mas tudo isso
Dentro do disco voador não podia deixar de ser indiferente para mim.
Ou distante. Ou secundário. A maior virtude de minha espécie traidora
É a coragem, talvez a única coisa que é real, palpável até nas lágrimas
E adeuses. E coragem era o que eu pedia, fechado
No disco, assombrando lavradores e bêbados
jogados nas valas. Invoquei a coragem na maldita nave
Enquanto trilhava por guetos e parques que para um transeunte
Deviam parecer enormes, mas que para mim eram só tatuagens sem sentido,
Palavras magnéticas e indecifráveis, apenas um gesto
Insinuado debaixo do manto de lontras do planeta.
Será que havia me transformado em Stefan Zweig e visto a aproximação
Do meu suicídio? Quanto a isso a frieza da nave
Era inquestionável, no entanto, sonhava
Com um país cálido, uma varanda e um amor fiel e desesperado.
As lágrimas que logo derramava permaneciam na superfície
Do disco durante dias, testemunho de minha dor, mas
De uma espécie de poesia exaltada que cada vez mais
Apertava meu peito, minhas têmporas e meus rins. Uma varanda,
Um país cálido e um amor de grandes olhos fiéis
Se aproximando lentamente através do sonho, enquanto a nave
Deixava estrelas de fogo na ignorância de meus irmãos
E em sua inocência. E éramos uma bola de luz, o disco e eu,
Nas retinas dos pobres camponeses, uma imagem perecível
Que nunca diria o bastante sobre o meu anseio
Ou o mistério que era o princípio e o fim
Daquele artefato incompreensível. Foi assim até o
Fim dos meus dias, submetido aos ventos do arbítrio,
Sonhando, às vezes, que o disco se estatelava numa serra
Da América e meu cadáver quase sem um arranhão surgia
Para oferecer-se aos olhos de velhos montanheses e historiadores:
Um ovo num ninho de ferros retorcidos. Sonhando
Que o disco e eu havíamos concluído nossa dança peripatética,
Ou nossa pobre crítica da Realidade, numa colisão indolor
E anônima em algum deserto do planeta. Morte
Que não me trouxe paz nenhuma, pois após corromper-se a minha carne
Ainda continuava sonhando.



Roberto Bolaño
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

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