quarta-feira, abril 29, 2009

MÚSICA DESERTA (Rodrigo Garcia Lopes)



Tempo reverte. Era um devir, a base de uma experiência, de virar muitos e um, chuva virando gente e vice-versa. Chovia, mas não estávamos aqui. Agora, de novo, estamos. A chuva parou. Agora o tempo se esvazia, luz num copo d´água, já que seu devir é um tipo de entropia, metempsicose. Seu retorno, vê, não é apenas para um só mas para muitos, se é que esta paisagem de noite de chuva com um mar em si ainda significa alguma coisa. Ou que inclui uma chuva, piscina de silêncio. Oásis de sussurros, cobra sibila. Essa chuva vira um tipo de filosofia, mais intensa, um modo de existência, vertendo-se em desvios. Numa outra língua: como se o futuro fosse agora mesmo aqui & em toda parte junto da chuva do poema, ou da neve do não-poema, ou do deserto do ainda não escrito. Essa corrente, essa mente. O sentido de algo. Algo poderoso. Uma mutação biológica, uma sensação alien nos ocupa, um mergulho em outro espaço, nadando rumo a uma manhã ofuscante. Vê: essas são apenas palavras, aspectos de múltiplos eventos raptados num momento de distração. O sentido é algo como um sintoma, fugidio, sempre virtual como um vírus, uma força mais poderosa do que nós. Despossessão, multiplicidade de sensação. Sem direções: só ligas, pontos de interseção: a chuva deixa apenas brechas e ameixas úmidas, mas daí a mente a tudo reconecta e, com elas, o mu(n)do. Este. E novamente a chuva: escuta. Algo, não uma dor, além de nós, além de todos os sentidos. Como esta noite ocorrendo e aproximando-se como um avião. Noite é plural, como a flora. Tempestades são poesia pois parecem prosa, mas esta não é uma questão reveladora ou relevante, não é só questão de devir, mas a qualidade da experiência o que interessa. O que interessa é: você e eu não somos o mesmo não importa o quão um possamos ser. Você, chuva, com sua festa de diferenças, seu carnaval de sons-imagens, seu brilho sábio & tranqüilo, faz de mim um homem virando chuva. Talvez agora você possa ser gente novamente. Vê: não sou seu oposto, pois agora você chove e eu respiro. Os pássaros do não-ser cantam lá fora, dentro de nós. Sombras na página-vagina, uma lírica quebrada feita de respiração e queda. Meu devir dizendo que você está devindo, e afirmando nesta coisa ou sentido ou o que quer que seja com a mesma força que faz chover, ou trazer nossas idéias para dentro das margens, contra a corrente, ou o poder em nós de olhar silenciosamente o dia virando noite, assim mesmo, virando alguma coisa, uma coisa boa de ver virar. Ao dizer isso eu quero dizer, eu digo, eu algo. Que pode ser noite, você, chuva, céu, ou esta escrita.

Nenhum comentário: