quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Epigramas, de Marcial, na Zero Hora

BOCA MALDITA
Tradução verte para o português a sátira sacana do poeta romano Marcial
Carlos André MoreiraEpigramas de autor romano do primeiro século ganham versão assinada pelo poeta e tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes
CARLOS ANDRÉ MOREIRA
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Jacqueline Sasano / DivulgaçãoTradutor Rodrigo Garcia Lopes fez versão para epigramas de Marco Valério MarcialJacqueline Sasano / Divulgação

Ao contrário do que podem achar algumas sensibilidades conservadoras dispostas a fechar exposições "obscenas" por aí, a relação entre arte e sacanagem é tão antiga quanto frutífera. Um bom exemplo disso pode ser encontrado na recente edição em português dos Epigramas, composições breves do poeta Marco Valério Marcial (40 – 104), que viveu na Roma do primeiro século da Era Cristã e fez de seus versos navalhas certeiras dirigidas ao que considerava os vícios e hipocrisias do mundo em que vivia.
Epigramas foram uma forma de poesia breve muito difundida na antiguidade. Seu espírito direto e por vezes cortante servia tanto para breves elegias ou epitáfios quanto para ataques a desafetos e ditos humorísticos que poderiam muito bem ser enquadrados, hoje em dia, como "piadas bagaceiras" – Marcial e seu precursor Catulo (87?a.C. –57?a.C.) foram mestres tanto num caso como no outro.

Nascido em Bílbilis, no território em que hoje se localiza a região espanhola de Zaragoza, Marcial mudou-se, pouco depois de seus 20 anos, para Roma, o centro do Império, onde viveu por décadas, como era comum em sua época, apadrinhado por nobres ricos ou por figuras ligadas ao poder imperial.
Seus poemas curtos, antecipadores de muitos “tuítes” de hoje em dia, atacavam o que considerava defeitos de seus contemporâneos, como o oportunismo, a desfaçatez dos jogos de interesses e até a cara de pau de outros poetas que roubavam a autoria de seus versos e passavam a lê-los nos saraus públicos como se de autoria própria. Ele também compôs tiradas maliciosas ou abertamente obscenas sobre os costumes sexuais de seu tempo (a seleção no quadro ao lado reúne alguns poucos mordazes mas ainda publicáveis).
– Marcial é impiedoso em seus versos. Em muitos instantes ele poderia ser considerado politicamente incorreto, mas é impossível aplicar à obra dele um contexto do século 21 que não existia em seu tempo. Os únicos que ele poupava eram seus patronos, porque aí ele adulava e puxava o saco mesmo – explica o tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes.
Epigramas reúne 219 poemas de Marcial publicados ao longo de toda sua vida. A versão em português vem acompanhada do original latino, e a edição tem o formato de um arquivo de capa dura em que 12 cadernos podem ser destacados e separados, e cada um deles corresponde a um dos 12 livros que o poeta de fato publicou em vida.
– Marcial costumava chamar cada livro que publicava de "libellus", ou seja, "livrinho", uma maneira ao mesmo tempo irônica, carinhosa e autodepreciativa de se referir ao próprio trabalho. Foi a partir dessa ideia que Gustavo Piqueira (designer responsável pelo projeto gráfico) teve a ideia de publicar a obra em forma de livros menores. Claro que também isso foi uma licença poética, já que, na época de Marcial, os livros eram em rolos – diz Lopes.
Jornalista, escritor, poeta e tradutor, Rodrigo Garcia Lopes tem uma história de três décadas com Marcial. Descobriu a poesia do romano enquanto fazia mestrado sobre William Burroughs no Arizona, em 1990, e foi traduzindo aos poucos os epigramas que chamavam a sua atenção.
– Em 2014, eu já tinha uns cem epigramas traduzidos e me dei conta de que precisava me dedicar àquilo. Mergulhei no conjunto e traduzi mais da metade do livro em uma imersão de dois anos. Selecionei um conjunto que apresentasse uma versão por inteiro de seu trabalho, porque ele podia, como poeta, ser terno, ser comovente, ser elegíaco e em outros momentos ser impiedoso. Mesmo proibido durante a Idade Média, ele é retomado por outros mais adiante como Bocage ou Quevedo. 

POEMAS DE MARCIAL:
Carlos André Moreira
XLVII
Diaulo, o coveiro, até ontem era doutor:
o que fazia antes, agora faz melhor.
LXXXIII
Seu totó lambe sua boca, sua língua. Como gosta!
Não me admiro, Maneia. Cães adoram bosta.
CX
Você diz, Veloz, que meus poemas são longos.
Você não escreve nada: isto é concisão.
XLIX
Você bebe o melhor vinho, nos oferece o pior:
prefiro cheirar seu copo que beber do meu.
LXXXIII
Me persegue, fujo; foge, te persigo. Percebe?
Quero que me recuse, não que me deseje.
XLVIII
Quando a turma da toga grita “Bravo!”, Pompônio,
Não é pro seu discurso, e sim pro seu jantar.
LI
Dá jantares e nunca me convida, Luperco.
Descobri um jeito de te ferir: ficar puto,
e ai de você se ousar me convidar.
“O que você vai fazer?” Eu? Ir.

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